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Destaques

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MELANIE PEREIRA:
“Essa espécie de competição entre ficção e documentário, completamente estúpida, existe"

Sábado 19 "As Melusinas à Margem do Rio", sessão em ante-estreia com a presença da realizadora às 21h30 no IPDJ

Vencedor de três prémios na edição 2023 do Doclisboa, entre eles o de Melhor Filme da Competição Portuguesa, o filme final deste vistacurta tem a assinatura de uma presença assídua por aqui — Melanie Pereira. Aos meus pais (2018) e Nos jardins do Barrocal (2019), são os seus filmes anteriores vistos no vistacurta, antes de passar pela edição de 2021 para integrar o júri das secções competitivas.

Em 2023, o teu “As Melusinas…” recebeu três prémios do Doclisboa. No discurso de aceitação, contaste que “o cinema português sempre foi difícil e pede muitos sacrifícios.” Como está esta relação com o cinema?
Tenho que contextualizar um bocadinho o que foi dito nesse discurso. No ano passado tive uma experiência muito má no cinema, que não teve nada a ver com As Melusinas, nem com as pessoas envolvidas neste filme. Foi um projeto à parte, um processo extremamente abusivo a vários níveis, laboral, emocional... E o resultado disso foi eu realmente duvidar se queria continuar a fazer cinema. Se sequer sabia fazer cinema. Se Portugal era um país onde eu queria fazer cinema, porque o cinema pede a quem trabalha — a quem trabalha em cultura — muitos sacrifícios. Porque muito do discurso que eu ouvi nessa altura era que, por eu fazer documentário, não sabia fazer cinema. É uma coisa interessante, não é? Essa espécie de competição que há entre a ficção e o documentário, que é completamente estúpida, mas existe.
Rapidamente voltei a pegar na câmara. Por muito que pensasse que não ia voltar, comecei logo a filmar um filme sobre a minha avó. De forma completamente independente. É um filme que ainda está em processo de montagem. Também não é um filme fácil, mas decidi não querer apoios, não querer sujeitar o filme a esse tempo de espera e a essa espécie de censura que às vezes um financiamento pode dar.

Recentemente, escrevias num texto que tens "posto em causa a utilidade do Cinema, de eventos em volta do Cinema".
Lembro-me desse texto porque era um sentimento que eu já tinha há algum tempo e que estalou assim, de uma forma maior, com este novo episódio da Palestina, em que de repente somos todos testemunhas de um genocídio em directo. Somos bombardeados de imagens, desde as clássicas das casas em ruínas, até às de corpos de crianças desmembrados nos nossos feeds. Claro que aquilo que vemos é uma denúncia, e é importante. E eu lembro-me de estar a preparar na altura o Porto/Post/Doc, e não me estava a fazer sentido fazer parte de um festival de cinema. Não me estava a fazer sentido estrear As Melusinas naquele contexto. Qual é o sentido de mostrar às pessoas um filme sobre seis mulheres que são do Luxemburgo e são, de certa forma, privilegiadas? O que é que isto tem a ver com o que está a acontecer agora?
E depois vi o Bye Bye Tibériade [Lina Soualem, 2023], que é um filme sobre a questão da Palestina, a realizadora é palestiniana e a mãe também. E aí percebi — ou voltei a perceber — a força que o cinema pode ter. E a importância do cinema, não só do cinema documental, para trazer estas questões à tela, para elas não serem esquecidas. É um filme tão forte, com depoimentos tão fortes, que eu estava na sala, e de repente senti que é por isto que eu faço cinema, e é por isto que o cinema existe, e é por isto que estas pessoas fazem cinema. Então, se calhar, faz sentido um evento que traga este tipo de filme.


As Melusinas à Margem do Rio

PORTUGAL, 2023 | 82'
Cinco mulheres nascidas no Luxemburgo, de famílias imigrantes, recriam uma lenda através da experiência dos trabalhadores, do género e da identidade nacional. Uma procura por identidades sempre fragmentadas. Uma tentativa incerta de reconciliações. Temas caros à realizadora, de novo em "As Melusinas à Margem do Rio" — uma produção Red Desert.
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Referes-te aos trabalhos feitos até aqui como o teu Ciclo da Emigração – já com quatro curtas-metragens e agora uma primeira longa. Estás, neste momento, a trabalhar em mais dois filmes – sobre a tua avó e sobre Castro Laboreiro. Serão o encerrar deste Ciclo?
O ciclo não está fechado. Acho que vai deixar de ser o Ciclo da Emigração e passar a ser o Ciclo da Migração ou das Migrações. Castro Laboreiro foi um acaso, até foi o Pedro Neves que me falou da zona, que obviamente está muito relacionada com a emigração. Mas Castro Laboreiro fascinou-me também pela questão de ser uma zona muito vivenciada por mulheres, e por toda a questão da natureza: é um dos pontos do país que realmente ainda é rural, na sua essência. E é muito bonito poder ainda presenciar isso. Então o filme não vai ser só sobre isso, obviamente, mas também tem essa componente da migração dentro dela.
Quanto ao filme sobre a minha avó: ela teve duas filhas que emigraram, o próprio marido também emigrou. Não está a ser um filme fácil de fazer. Vai abordar essa questão de forma muito subtil. Ou seja, não é o tema do filme, mas também está lá. Todo o trabalho artístico é sempre autobiográfico, não só o meu. Acho que vai ser muito difícil conseguir desligar-me completamente desta questão da migração. Para o mês que vem, vou entrar em pré-produção num filme que vou fazer com o meu pai, no Luxemburgo. Ele vai reformar-se no final do ano e eu queria muito acompanhá-lo na última semana de trabalho. Ele sempre foi condutor de camião em obras, e é um filme sobre isso. Sobre uma pessoa que emigrou para o Luxemburgo, está na sua última semana de trabalho, e agora? Fica lá ou volta? Entretanto passaram 35 anos. Regressa para um sítio que já não é igual, que já não tem as mesmas pessoas? A vida também está diferente. Tem família no sítio para onde migrou. Vai deixar essa família para voltar para um sítio onde se calhar já não há ninguém? Acho que essa questão da migração, para mim, está muito ligada à questão da casa, que é algo que também vou sempre abordar nos meus filmes. Não só a casa comum — ou seja, uma estrutura arquitectónica — mas o sentimento de pertença. Entretanto, perguntaram-me se daqui a 20 anos faria umas novas Melusinas com a terceira geração de filhos de imigrantes no Luxemburgo. E tenho pensado nisso. Não é uma má ideia!


MELANIE PEREIRA
Enquanto realizadora de cinema, a sua obra gravita em torno da emigração portuguesa e da luta pelos direitos das mulheres. Os seus primeiros trabalhos, que fazem parte do que ela chama de Ciclo da Emigração, tratam de fragmentos migratórios através de observações, memórias, tempos e arquivos. Activista feminista, também desenvolve várias pesquisas e trabalhos em torno do cinema e das mulheres, especialmente no contexto português.